Quadros
de Chico Buarque, Rita Lee, Jhonny Depp fazem parceria com o pôster de Che
Guevara na missão de enfeitar as paredes recentemente pintadas nas cores
amarelo e cinza. O espaço é pequeno, uma cama de solteiro ocupa a metade do território,
a outra metade é preenchida por um guarda roupa branco recém adquirido, uma
escrivaninha caramelo finda a ordenação. O rangido da porta inicia-se. Entra,
senta, olha para o livro deitado sobre o notebook, “Como sobreviver em um mundo
brega: dicas de saúde, lazer, moda e relacionamento”. Suas mãos abraçam o
livro, colocando-o no cume da pequena montanha de papeis no canto direito da
mesa. Liga o notebook, fone de ouvido ativado, olhos atentos. A tela brilha! Um
link casual nas atualizações do facebook
chama atenção, acessa, o nome do site é Espaço
Vesânico, um artigo lhe causa curiosidade, começa a leitura em voz
sussurrada...
“Noites
Brancas, esse nome remete meu gosto intelectual a um conto de Fiódor Dostoiévski;
homem trágico, repleto de vícios, mas sedento por compreensão, ele se faz
esbaforido no meio de tanta maldição. Ao definir a vontade proporcionada pelo gozo
através da sublimação - Meu Deus! Um momento de felicidade! Sim! Não será isso
o bastante para preencher a vida? Faz o russo definir a condição de amar e ser
amado.
Se
amor é uma das condições existências que fazem o humano pulsar em meio a tanta
calamidade existencial, a recusa de tal sentimento torna-se algo completamente
inverossímil. Pertencemos a uma geração que recusa fomentar sentimentos cancerígenos? Conjecturamos-nos da mesma
forma que o herói de Robert Musil, Ulrich, é construído no romance ‘O homem sem
qualidades’? Seriamos então ‘O homem sem coragem’?
Considero
você e sua turma do pátio ginasial um bando de frouxos, sedentos por prazer,
mas incapazes de se arriscar na mais dolorosa missão em ventura da beleza.
Confesso que me considero uma mescla do jovem sonhador do conto já citado de
Dostoiévski com Don Juan, protagonista blasfemo da obra de Molière; ainda faço
parte do bando de frouxos. Culpa? O que seria de nós sem ela!
No
conto encontramos um rapaz tímido, que raramente obteve contato com pessoas
(acesso nulo às mulheres), deixando-o completamente improdutivo na área de se
relacionar, mas isso não o impossibilitou amar; ao encontrar a jovem donzela Nástienhka
o câncer aparece. Sintoma chamado amor, que fere, cicatriza, mata e ressuscita
quem eleva tal sentimento ao mais alto pedestal da nobreza. O conto nos faz
perceber ao âmbito do amor quanto tal manifestação nos custa caro e ao mesmo
tempo proporciona o minuto de felicidade que nossa insuficiência cósmica sempre
buscou. Todavia a obra de Molière expõe a velocidade que destrói os vínculos,
através de Don Juan, enamorado compulsivo do gozo pelo gozo, não
agregando responsabilidade aos atos desenvolvidos por sua personalidade surda
às censuras de outrem. A defesa que Don Juan faz de suas ações remete à defesa
contemporânea de um mundo reticente a relacionamentos
'Você pretende que uma pessoa se
ligue definitivamente a um só objeto de paixão, como se fosse o único
existente? Depois disso renunciar ao mundo, ficar cego para todas as outras
formosuras? Bela coisa, sem dúvida, uma pessoa em plena juventude enterrar-se
para sempre na cova de uma sedução, morto para todas as belezas do mundo em
forma de mulher. Tudo em nome de uma honra artificial que chamam fidelidade?
Ser fiel é ridículo, tolo, só serve aos medíocres. Todas as belas têm direito a
um instante de nosso encantamento.' (Don Juan, pagina.05. Tradução e Adaptação: Millôr Fernandes).
Neste ambiente a obra do sociólogo polonês Zygmunt
Bauman nos traz um diagnostico cirúrgico sobre a condição dos vínculos na
Modernidade Liquida. Bauman faz analogia entre os relacionamentos e os produtos
do mercado consumidor, ambos tendem a ser cada vez mais desprovidos de valor,
comprometimento e tradição; cria-se uma condição de objeto descartável, pronto
para a lixeira, prateleiras contaminadas pelo desejo tendo a morte como
ferramenta inerente.
‘Se o desejo quer consumir, o
amor quer possuir’ (Amor Liquido, pagina. 24. BAUMAN)
Creio que Søren Kierkegaard estava repleto de razão
ao afirmar durante todo o livro ‘O Matrimonio’ que o amor é maior aos
simplórios e infantis finais das histórias românticas, todos que amam o sabem
por certo, amar não nos leva a um final de felicidade plena, tal como o grego
Aristóteles nos disse em ‘ Ética a Nicómaco’; uma só andorinha não faz a
Primavera, nem um só dia formoso; e não pode tão-pouco dizer-se que um só dia
de felicidade, nem mesmo uma temporada, bastam para fazer um homem ditoso e
afortunado. A vida deve ser calcada por inteira, para isso é necessário
comprometimento com o outro, a espera pode ser de fundamental importância ao
combate contra uma vida canalha ornamentada por episódios vazios.
‘por que é o selo da eternidade o
que distingue o amor da voluptuosidade.’ (O Matrimonio, pagina.18. KIERKEGAARD)
Amar pode significar diversas possibilidades
epistemológicas em um mundo, ao meu ver, atormentado e impossibilitado pelo
relativismo. Gosto do amor heróico , amor que destrói a alma, ferindo com toda
posse que reciprocamente é demandada, medicando com a grande sensibilidade que
é ofertada. Uma cena que traz a tona o que explano é o clímax do filme ‘A vida
secreta das palavras’, da diretora Isabel Coixet. Quando a meiga e aguerrida
enfermeira Hanna interpretada por Sarah Polley conta a seu paciente Josef,
interpretado por Tim Robbins, os horrores físicos e psicológicos que sofreu
durante a guerra dos Bálcãs – eles se conhecem quando, ao tirar férias, Hanna
decidi trabalhar como enfermeira em uma plataforma petrolífera, exercendo a
tarefa de zelar pela saúde de Josef, que sofre graves queimaduras ao tentar
salvar a vida do melhor amigo. Ao longo da história descobrimos que Josef
estava tendo relações intimas com a mulher do amigo, depois de contar o fato ao
traído, este resolve cometer suicídio no momento que uma bolsa de gás explode durante
o trabalho de perfuração, Josef tenta salva-lo, não consegue, o marido morre e
o amante fica temporariamente cego, alem de sofrer graves queimaduras por todo
o corpo. Ambos estão envoltos sobre uma nuvem de tragédia, mas como dito por
Dostoiévski, ao sermos infelizes ficamos mais aptos a compreender o sofrimento
alheio; a nossa sensibilidade, assim, não se degrada, mas, pelo contrário,
condensa-se e acumula-se.
Condensados
pelas maculas que a vida lhes golpeou o amor nasce, a responsabilidade reina de
forma soberana. O afeto se faz na escuridão que o silêncio proporciona, refutando
qualquer possibilidade de superficialidade promovida em um mundo que se
contenta com o vácuo.”
Fim do artigo, o dedo indicador sobre o mouse clica
no botão esquerdo, a página fecha, o facebook permanece em estado online, as
janelas de bate-papo latejam por atenção, as atualizações aumentam com o avanço
dos segundos. Instantaneidade! Frivolidade! No peito do ser que olha para a
tela cresce um vazio descomunal rodeado pelo desejo insaciável da novidade, a
voz joga ao vento gélido de uma noite invernal um nome que amedronta os
convalescidos do jardim da desonra:
- Hamlet...
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